domingo, 26 de maio de 2013

O Peso do Medo




Acordou às 4 da manhã, como de costume, e decidiu esperar até o seu despertador tocar, como de costume. Ficou esperando no escuro até ouvir os irritantes “bips” vindos de cima do seu criado-mudo. Uma calma a invadiu tão rapidamente que, por um segundo, ela pensou ter sido atingida por um dardo tranquilizante. Agora se sentia segura para levantar da cama e seguir com a sua rotina normal, como se nada tivesse acontecido naquela noite.

Enquanto tomava banho sentia os olhos arderem e lacrimejarem com a água e o sabão que escorriam, mas se recusava a fechá-los. Escovou os dentes em frente a um espelho totalmente coberto por jornal. Durante o café da manhã, a colher é que passava a manteiga em suas torradas desde que as facas e garfos tinham sido aposentados. Destrancou as quatro trancas de sua porta e saiu de casa, trancando-a novamente. Dispensou o elevador e desceu oito andares pela escada. Antes de entrar no seu carro abriu as portas e, em seguida, os vidros; só então entrou e fechou as portas, mantendo as janelas abertas. Olhou para o terço pendurado no seu retrovisor – que também estava coberto por jornal, como o espelho do banheiro – e o encarou por alguns segundos enquanto ele balançava levemente, por conta do movimento que sofreu quando ela entrou no carro. Olhou para traz e deu ré seguindo para o trabalho.

Mais um dia comum no trabalho, nada orgulhosa de ser apenas “a garota da Xerox”, invisível e sem graça. No almoço não sentia fome, tomou aquele café horrível de uma máquina do escritório e pensou se um copo de 200 ml seria suficiente para mantê-la acordada uma noite inteira. Tomou três. Engolia o líquido como se fosse um remédio ruim que precisasse tomar caso quisesse melhorar de sua doença. Os médicos já haviam perdido as esperanças. Ela também.

Na volta para casa foi multada por passar num sinal vermelho e por ter os retrovisores cobertos por jornal. O sinal vermelho foi apenas um descuido, mas ela não pretendia mudar a realidade dos espelhos que estivessem ao seu alcance. Chegou a casa depois do que pareceu uma eternidade e, depois que conferiu todos os cômodos e trancas, como sempre, tomou um banho demorado, até o ponto que seus olhos não aguentavam mais o ardor. Vestiu uma camisa velha, calcinha e meias e foi sentar-se no sofá da sala. Ficou lá durante mais de uma hora, sem fazer nada além de olhar fixamente para o lugar na estante que um dia abrigou uma TV.

Ouviu algum ruído vindo da cozinha e instantaneamente virou e olhou para a entrada do cômodo, os olhos vermelhos e arregalados. Passou-se um tempo e como mais nada aconteceu ela se permitiu piscar. Durante o milésimo de segundo que levou com os olhos fechados, pôde sentir que estavam lá. Abriu os olhos. Olhou ao redor. Seu coração batia tão alto que ecoava em seus ouvidos deixando-a com uma forte dor de cabeça. Não havia nada lá. Ao menos nada que ela pudesse ver. Pesadamente esticou o braço, encaixou de volta o fio do telefone e o colocou no ouvido lentamente. Ouviu o sinal da linha e, aliviada, discou o número do telefone de sua irmã. Quando ouviu a voz dela não conseguiu controlar a sua própria, gaguejando pediu que ela viesse encontrá-la em sua casa, era urgente.

Meia hora se passou e, no meio do silêncio perturbador, ouviram-se as batidas na porta.  Ela levantou lentamente, como se aqueles movimentos fossem os piores sacrifícios que já teve que fazer. Ela não se importava mais em fazer sacrifícios, estava complemente disposta a fazer o que fosse preciso para que tudo aquilo parasse de uma vez.

As perguntas de sempre “O quê aconteceu com a sua campainha? O quê aconteceu com você? Ah, meu Deus, você está doente? Está pálida, tem se alimentado?”. Ela não respondeu nada, simplesmente rastejou de volta para o sofá e sentou na mesma posição de antes, abraçando os joelhos e olhando fixamente para o nada. Sua irmã se apressou a entrar e fechar a porta, ficando espantada com a quantidade de trancas na porta. Sentou do lado da sua irmã mais nova, que parecia gravemente adoentada, colocou a mão em sua testa e a retirou num susto. Não estava quente como o esperado, mas fria. Fria demais. Insistia em perguntar o que acontecera. Perguntou se a casa havia sido assaltada e era esse o motivo das trancas, mas ela mantinha um silêncio impenetrável. Quase desistindo de tentar descobrir se alguma coisa tinha acontecido, ela percebeu o olhar fixo de sua irmã no vão da sua estante. Estava prestes a perguntar onde estava a TV, quando percebeu que a madeira estava curvada para baixo, como se o peso da TV permanecesse mesmo depois da sua ausência.

Perturbada com aquilo, ela pegou sua irmã mais nova pelo braço e a levou para o quarto e, por um instante, pensou ter ouvido o ranger da madeira da estante. A garota continuava agindo estranhamente quieta e se movimentava como uma boneca sendo guiada pelas mãos da irmã. Depois de colocá-la na cama deitou ao seu lado e cobriu as duas com o mesmo cobertor. Abraçou seu corpo frio esperando que o contado pudesse aquecê-la. Enquanto a irmã mais velha dormia, a irmã mais nova sentia medo. Sentia sombras. Sentia sopros. Sentia frio. Não aguentava mais sentir em silêncio e gritou. Seu gritou cortou a noite escura, interrompeu o sono dos vizinhos e assustou a sua irmã, que dormia ao seu lado. Nada a acalmava então sua irmã mais velha a colocou sob a água quente do chuveiro e a abraçou, sem se importar com as roupas de ambas. Aos poucos os gritos deram lugar ao choro e as duas choraram juntas, as lágrimas se misturando com a água do chuveiro.

Os pedidos de ajuda da irmã mais nova eram baixos e desesperados. Ela dizia que havia alguma coisa de errado na casa. Alguma coisa. Alguma coisa. Alguma coisa, ela repetia sem parar. A respiração ofegante foi desacelerando, mas o desespero da voz só aumentava.

Ela foi desprendendo-se do abraço lentamente e não controlava seu corpo que se dirigia ao chão por força maior que a da gravidade. Me ajude. Me ajude. Me ajude, ela repetia. Seu corpo pesava e formigava e ela não tinha controle sobre nada a não ser suas palavras de súplica. Sua irmã tentava segurá-la firme e impedir sua eminente queda, mas era impossível, ela estava muito pesada, como se carregasse algo muito pesado em suas costas. Caíram as duas no chão molhado, chorando e se abraçando, até que a irmã mais nova inspirou com força, como se tivesse prendido a respiração até aquele momento e agora chegava ao seu limite, tossindo em seguida. Assim que ela estabilizou sua respiração as duas se secaram, se trocaram e voltaram para a cama, permanecendo abraçadas até adormecerem. E até acordarem no meio da noite. Levantaram, deram as mãos, saíram de casa, subiram até o terraço, se atiraram para o chão.

Um comentário:

  1. Olha, acho que você se superou dessa vez. Esse é um desses contos que até poderiam se estender, mas que não precisam. Está ótimo como está, meus parabéns.

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