sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Da Série: Quando as Luzes Se Apagam. Pesadelo 03

Em frente ao espelho ela tentava se convencer de que as olheiras sumiriam. O tic tac baixo do relógio era o único som no quarto. Em frente ao relógio ela tentou se convencer de que era hora de dormir. Prendeu os cabelos num rabo-de-cavalo antes de se deitar, e desligar as luzes, e fechar os olhos, e respirar fundo.

Ela estava no seu quarto, um ambiente conhecido dessa vez. Sabia disso porque no escuro ela enxergava a janela e a luz da lua na cortina. Não só enxergava no escuro. Enxergava de olhos fechados. Olhava a escrivaninha à sua direita, o guarda-roupa à sua esquerda e... Ela mesma deitada na cama atrás dela. Não só enxergava de olhos fechados. Enxergava em velocidade atrasada. Agora a sua imagem na cama levantava, de olhos fechados, e parava exatamente na sua frente. Olhava a janela, olhava a escrivaninha, olhava o guarda-roupa e voltava a olhar para ela com a cabeça para o lado, como se perguntasse "o que vamos fazer agora?".

Estranhamente dessa vez ela se sentia segura. Pela primeira vez nesse mundo ela se sentia segura. Mesmo no escuro, de olhos fechados. Decidiu então abrir a porta e dar uma volta pela casa. Saindo no corredor olhou para traz e, se certificando de que sua sombra continuava a imitá-la, seguiu em frente. Passou pela porta aberta do banheiro e viu seu reflexo no espelho, com os olhos fechados, no escuro. Não ficou para ver o reflexo de sua sombra, continuou andando, passando pelas duas portas fechadas dos outros quartos, chegando à sala. Olhou a mesa e as paredes, lembrou-se das cores de cada coisa, mas via tudo em preto e cinza. sua sombra parou atras dela. Isso ela não viu, apenas sentiu sua presença em suas costas. 

Chegou à cozinha e ali estava mais escuro que os outros cômodos até então, mas ela não sentia medo, se sentia absolutamente segura e deu o primeiro passo adentro, como se desafiasse aquele mundo a intimidá-la. De cabeça erguida passou pela geladeira, pela pia, pelo fogão, pelo escuro. Parou. Parou e pensou que ela estava muito bem ali, sozinha no escuro, que poderia ficar ali mais um tempo antes de voltar para a cama. Ainda sentia a sua sombra atrás dela, sentia ela se encolhendo de medo, ao contrário dela. Sentia sua sombra tremer, covarde. 

Ela olhava hipnotizada o escuro sem fim da cozinha e perdia a noção do tempo. Deve estar na hora de voltar a dormir. Deu a volta e foi em direção ao fim da cozinha. Enquanto andava em passos lentos sentia o escuro devorar tudo atrás dela. O fogão, a pia, a geladeira. Não se preocupava que a escuridão a alcançasse, ou sua sombra - que parecia desesperada para sair dali, mas não tinha como deixar se seguir cada passo de sua presa. Deu o primeiro passo sala adentro e sentiu sua sombra fazendo o mesmo. No momento em que passaram o portal da cozinha já não estavam mais sozinhas. A segurança ameaçava deixá-la, mas se esforçava ao máximo para continuar ali. Ela parou em frente a janela da sala, olhando a luz da lua e tentando se convencer de que era corajosa, de que não estava com medo, de que a escuridão era a sua amiga. 

Olhando hipnotizada a claridade perdia aos poucos a capacidade de enxergar no escuro, com os olhos fechados. Sentindo uma mão enroscar dedos compridos em sua coxa e lentamente encravar suas garras nela, arrancando, num processo gradativo, um grito, que veio primeiro em forma de sussurro, para só quando as garras já chegavam próximas ao fêmur, transformar-se em berros de dor e desespero. Ela gritava em agonia, mas não conseguia mexer nenhum de seus membros. Olhava os dedos inteiros dentro da sua carne e não conseguia fazer nada para tirá-los, para salvar-se. Olhou para a direita e viu a sua sombra com a boca aberta, como se gritasse, mas só quem emitia som era ela. Entretanto, sua sombra podia se mexer. Mexia-se desesperada tentando puxar algo invisível de sua coxa. Gritava seu grito mudo e puxava sua garra invisível em uma cena desesperadora, digna de piedade do mais cruel vilão. Mas não este. 

Duas garotas desesperadas, numa sala escura, lutavam inutilmente contra algo. 
Uma morreria e a outra simplesmente acordaria em seu mundo. 

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