sábado, 26 de maio de 2012

Perfeição - Parte II

  Não demorou muito para chegarmos. A carruagem estacionou na frente de um hotel que parecia antigo e acabado. Um casal de idosos, que imaginei serem os proprietários do local, nos aguardavam na entrada, abraçados e bem agasalhados por conta do frio que fazia a noite. Eles nos acompanharam até um saguão de entrada, onde funcionava a recepção e o senhor apanhou, atrás de um longo balcão empoeirado e descascado, duas chaves com etiquetas com números e deu uma para a sua esposa. 
  Então o casal nos acompanhou novamente por um longo corredor mal iluminado, com poucas velas pela metade. As portas que passamos pelo caminho estavam todas fechadas e aparentavam não serem abertas a muito tempo. Não havia sinal de outro hóspede ou funcionário em nenhum lugar. 
  Depois de alguns minutos chegamos ao final do corredor, com uma porta na direito e outra na esquerda e, encostada na parede entre as duas, uma mesinha comida por cupins, empoeirada. Em cima dela havia um jarro de prata também empoeirado com algumas flores murchas que deduzi terem sido lindas rosas vermelhas um dia.
  A senhora, que era bem mais baixa que eu, foi abrir a porta da direita enquanto o senhor abria a porta da esquerda e entrou lá com o meu marido. Ela me segurou pelo braço amigavelmente e me disse com um sorriso que me daria um banho. Entramos no cômodo e ela foi abrir as cortinas para que a luz da lua clareasse um pouco o ambiente. A poeira subiu e eu espirrei duas vezes. Olhei ao redor e notei uma grande banheira de madeira no centro, uma cômoda com um castiçal grande, um armário e uma cadeira. 
  A velhinha foi até a cômoda e acendeu duas velas do castiçal ajudando a clarear um pouco as coisas. Ela abriu uma gaveta e pegou uma toalha. Abriu outra e pegou uma esponja e um pote, que eu imaginei ser de sais de banho, e deixou tudo em cima da cômoda. Veio em minha direção e começou a me despir, desamarrando os laços de cetim negro. Tirou o meu vestido e começou a tirar a minha roupa de baixo, desatando facilmente cada nó do meu espartilho e me surpreendendo com a sua experiência nesta tarefa. 
  - Você tem um belo corpo. Uma pele tão clara, macia e suave... - ela disse enquanto pegava as minhas roupas do chão e via a minha pele arrepiada de frio.
  Eu agradeci com um sorriso, mas ela não viu já que estava de costas para mim, guardando minhas roupas no armário. Rapidamente ela voltou e, segurando a minha mão, me levou até a banheira e me ajudou a entrar. A água estava morna e eu agradeci internamente por isso, já estava tremendo de frio. Enquanto eu me sentava, ela foi até a cômoda, pegou o potinho e a esponja e voltou. 
  Despejou o conteúdo do pote na água e chacoalhou um pouco produzindo uma espuma branquinha e cheirosa que me relaxou imediatamente. Ela pegou a esponja e começou a esfregar delicadamente os meus braços, meu pescoço... Encharcou um pouco a esponja e apertou sobre a minha cabeça e eu pude sentir a água escorrer pelos meus cabelos. 
Eu estava quase adormecendo de tão relaxante que estava o banho, quando ela falou:
  - Você deve estar muito feliz, ele será tão bom pra você. E vocês formam um belo casal. Aliás, você é uma bela moça. Tão linda! E ficará ainda mais bonita... Ficará perfeita!
  Aquilo me despertou e me lembrou do que aquela mulher havia me falado na saída da catedral, após o meu casamento, mas eu procurei não demonstrar.
  Terminado o banho a velhinha me entregou a toalha e, enquanto eu me secava, ela foi até o armário e apanhou um outro vestido simples e preto que parecia uma camisola longa. Me vestiu e me perfumou com vários cremes e loções que também estavam na cômoda. Sentou-me na cadeira e penteou os meus cabelos com uma escova de cerdas macias. E quando eu percebi ela já estava de saída.
  Me levantei com o meu coração pesado e abri a porta. Olhei ao longo do corredor e nem sinal da velha senhora. Imaginei que ela tivesse entrado em alguma das portas. Fechei a porta atrás de mim e olhei o corredor por um tempo. As velas já estavam próximas do fim e eu realmente não queria ficar no escuro, por isso entrei rapidamente no quarto onde o meu marido tinha entrado momentos antes.
  O quarto estava escuro e eu demorei um tempo pra me acostumar. Não foi tão difícil por que duas grandes janelas deixavam a luz da lua entrar. Ali mesmo da porta eu podia ver a neblina lá fora. Dentro do quarto havia uma cama de casal bem arrumada com um lençol branco (finalmente algo branco no meio de tanta escuridão), dois criados-mudos, um armário pequeno e uma cômoda com um espelho sujo. Não avistei o meu marido em nenhum lugar então fui me sentar na cama pensando que ele talvez estivesse no banho ainda.
  De repente escutei o barulho de uma porta abrindo e de imediato olhei para a porta por onde tinha entrado. Estava fechada. Olhei ao redor um pouco alarmada e vi o meu marido vindo em minha direção. Pensei que em algum dos cantos escuros deveria haver uma outra porta. Ele veio até mim e parou na minha frente. Olhei diretamente para o seu rosto e não vi nada novamente.Talvez ele tenha dito alguma coisa, mas eu não ouvi. Então ele contornou a cama e se deitou para dormir e eu fiz o mesmo cuidando para que eu estivesse bem coberta por conta do frio.
  Rapidamente adormeci e no meio da noite acordei quase congelando. O meu cobertor tinha caído. Apanhei ele do chão e tratei logo de me cobrir. Quando já estava pronta para voltar a dormir ouvi o barulho de gotas caindo no chão. Imediatamente pensei que a outra porta por onde o meu marido havia entrado era de um banheiro e que ele deveria estar com um vazamento. Mas logo descartei essa hipótese; o barulho estava próximo. Poderia haver uma infiltração no quarto. Abri bem os ouvidos e não escutei o barulho de chuva. Me virei para trás e meu marido não estava lá.
  Fiquei um tempo fitando a parede e notei uma mancha estranha que vinha de cima. Lentamente fui seguindo a mancha até quase o teto.
  Encontrei o meu marido.
  E descobri de onde vinham os pingos.
  Foi a coisa mais terrível que eu já vi em toda a minha vida.
  Ele estava preso na parede por fios vermelhos que me pareceram veias e artérias. Seus braços pendiam para os lados e sua cabeça estava virada revelando, pela primeira vez, o seu perfil. Um dos seus olhos estava solto e pendurado, sua bochecha estava suja com o seu próprio sangue. Seu corpo aparentava ter sido aberto por uma implosão nas costas e alguns dos seus órgãos haviam se grudado na parede o no teto e foram cobertos pelos mesmos fios vermelhos.
  Meu medo era tão grande que eu não conseguia me mover, pensar e nem mesmo gritar. Aquilo parecia o pesadelo e eu estava certa de que a qualquer momento eu despertaria. Eu não piscava. Quando dei por mim já estava correndo pelo corredor. Olhava as portas antigas passarem rápido por mim. Via as velas chegando ao fim. Via suas pequeninas chamas bruxuleando quando eu passava. E via a luz atrás de mim agitada assim como eu. E cada vez mais fraca. Assim como eu.
  Corria o mais rápido que podia e não me atrevia a olhar para trás. O corredor parecia não ter fim. A esta altura eu já deveria ter chegado ao saguão de entrada... não demoramos tanto para chegar ao fim do corredor. Vários minutos se passaram e eu ainda estava correndo... Cada vez mais devagar. Cada vez mais cansada. Cada vez mais ofegante.
  Tinha que ir mais rápido, as velas estavam no fim e eu não queria ficar no escuro. Tinha que ter alguém acordado para me ajudar. Por quê não tem ninguém aqui? Por quê esse corredor não chega ao fim? Por quê eu não acordo de uma vez?
  Não adiantava... Eu não chegava ao fim nunca...
  Parei por um momento para recuperar o meu fôlego e me apoiei nos joelhos. Aos poucos a luz ao meu redor foi esvaindo-se. E tudo foi ficando cada vez mais escuro... e mais escuro... e mais escuro... até não ter mais nenhuma fonte de luz...
  E agora as minhas lágrimas escorriam descontroladamente pela minha face. Eu não emitia som algum, os soluços estavam presos na minha garganta quase me asfixiando. Estendi uma das minhas mãos à procura de uma parede para me recostar e tentar me acalmar. Não encontrei nada. Estendi a outra. Nada novamente.
  Isso não era possível; o corredor era estreito o suficiente para que eu alcançasse as duas paredes com os meus braços abertos... Não faz sentido agora eu não encontrar nada. Eu chorava mais ainda. O que estava acontecendo? Aquilo não podia ser verdade... simplesmente... não podia estar acontecendo.
  Me sentei no chão frio e senti todo o meu corpo estremecer. Tudo ia acabar bem, logo logo iria amanhecer e eu iria só... me acalmar... e esperar... Então a luz reacendeu, ofuscando a minha visão. Levei alguns segundos para me reacostumar e olhar ao redor. O corredor estava exatamente do mesmo jeito que o encontrei quando cheguei ao hotel: as velas pela metade, as paredes no lugar e eu podia ver o inicio e o final. Pensei que eu finalmente tinha acordado daquele pesadelo e estava prestes a me levantar e correr para a saída quando as velas se apagaram de novo. E o pânico me invadiu de novo. Estiquei um dos braços e não encontrei parede nenhuma... Foi só uma ilusão? Eu estava confusa e com medo e, de repente, as luzes acenderam novamente para comprovar a minha insanidade. Olhei rápido ao redor e não havia ninguém ou nada fora do comum. Todas as portas fechadas e nem sinal do sol. E, novamente, quando pensei em me levantar, as luzes se apagaram. O frio e o medo me invadiram numa velocidade tão rápida que eu pensei que iria desmaiar. E então as luzes acenderam novamente. E se apagaram. E acenderam. E apagaram. Quase tão rápido quanto a minha respiração.
  A cada vez que as luzes acendiam, eu olhava ao redor a procura de alguma coisa, qualquer coisa... com medo do que poderia encontrar. Meu coração estava acelerado, o barulho dos seus batimentos era o único em todo o corredor. Estava tão alto em meus ouvidos que me faziam ter fortes dores de cabeça. Meu corpo fraquejava e tremia em oscilações cada vez mais frequentes, que descobri estar de acordo com o acender e apagar das luzes. A minha mente imaginava todo tipo de coisa enquanto as luzes estavam apagadas e procurava ansiosamente ao meu redor o que quer que fosse. Meu estômago dava voltas e voltas. Meus olhos arregalados, minha pele pálida, minha cabeça virava de um lado pra outro o tempo todo, minha respiração alta e minhas lágrimas me encharcando.
  Eu abracei forte as minhas pernas e abaixei a cabeça. E então pude ouvir longe... Era a mesma voz...
  - Como você está linda. Tão perfeita! Nossa, você está linda! Linda!
  Era a voz da mesma mulher que estava na igreja. Ela estava se aproximando. As luzes demoravam para reacender. Acenderam.  Eu olhei ao redor, inicio ao fim do corredor. Ninguém. Mas a voz continuava. Continuava se aproximando de mim. As luzes apagaram. A voz estava mais alta. As luzes acenderam. Ninguém. Apagaram... e a voz continuava. Acenderam... e não havia ninguém lá.
  Meu Deus! Por quê aquilo não parava? Eu não sabia por quanto tempo aguentaria... Ela estava se aproximando e não parava de repetir a mesma coisa, as luzes não paravam de acender e apagar... eu não parava de chorar...
  Então as luzes se acenderam.
  Talvez eu preferisse que continuasse tudo escuro.
  Em pé, na minha frente, estava a mulher que falou comigo no fim do meu casamento. Ela se abaixou e eu pude ver que no lugar dos seus olhos havia apenas dois grandes buracos escuros e vazios. Ela chegou bem perto e falou:
  - Linda... Você está linda... Per-fei-ta.
  As luzes apagaram. Eu entrei em pânico. Chorava como nunca havia chorado antes. Não podia ver nada, mas a imagem daquelas órbitas escuras não saía da minha mente. Fiquei com os olhos bem aberto olhando para frente e esperando que qualquer coisa acontecesse. Podia sentir a respiração gelada da mulher no meu rosto, balançando os meus cabelos. E as luzes acenderam.
  E bem na minha frente, quase me tocando, estavam aqueles vazios estranhos que substituíam dois olhos. Estava me encarando como se tivesse olhos. Estava ali, perto... sem pálpebras... só o escuro... Eu me afastei rápido me arrastando no chão e toquei em alguma coisa atrás de mim. Olhei pra cima e vi o casal de velhinhos, proprietários do hotel, seus olhos estavam do mesmo jeito... ou melhor, não estavam...
  Eles me encaravam como a mulher. Eu olhei pro lado procurando por uma saída e vi o padre, que realizou o meu casamento, sem olhos. Olhei para o outro lado e vi meu marido, em perfeito estado novamente, exceto pela falta de olhos. Percebi que também as beatas da igreja estavam lá, com seus véus e sem os seus olhos. Todos extremamente pálidos, sorrindo pra mim...  me elogiando ao mesmo tempo, sem parar.
  Eles começaram as se aproximar de mim, com as mãos estendidas, se agachando e tentando me alcançar. Eles não paravam de falar, se sorrir, eles não se afastavam, não importava o que eu fazia, se os chutava, se me debatia, se os empurrava. Nada que eu fazia surtia efeito.
  Eu chorava alto, gritava por socorro, soluçava e me debatia. o desespero me dominou por completo, meu instinto de sobrevivência fazia de tudo para me tirar dali, mas aquelas mãos estavam por toda parte, aqueles toques gelados não me deixavam ir, aquelas vozes não se calavam, aquelas faces, sem olhos, tão próximas e os sorrisos; eu não conseguia mais respirar, não conseguia me mover, não conseguia me libertar...
 Então as luzes apagaram.


                   

2 comentários:

  1. Agradecimentos especiais aos meus melhores amigos Lucas Guedes e Osvaldo Guimarães por me ajudarem, opinarem e sugerirem enquanto eu escrevia.
    Abraços, seus lindo! :}

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  2. Caralho......
    Ficou insanamente fodasticamente bom.
    Velho... eu pensei: que conto grande, vou ler só a primeira parte.
    Quando vi, eu estava com frio, ouvindo gotas, tremendo, e sentindo que os olhares dos sem olhos... enquanto lia e relia "Então as luzes se apagaram".

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